Num contexto global marcado pela crise ecológica e socioeconómica, o decrescimento emerge como uma proposta radical e urgente para repensar os nossos modos de vida, as estruturas económicas e a organização das cidades, com propostas concretas para a transição para sociedades mais justas, sustentáveis e centradas no bem-estar coletivo.
Nesta entrevista, conversámos com Susana Ribeira e Guilherme Serôdio, da Rede para o Decrescimento, sobre o que significa realmente decrescer, como este movimento se organiza no país, e que alternativas propõe para enfrentar os grandes desafios do presente.
De forma sucinta, como definiriam o decrescimento para quem nunca ouviu falar do termo antes?
Guilherme: Há quem lhe chame um projeto de sociedade, uma visão, uma atitude. Para mim o decrescimento é uma grelha de leitura. Não é opcional: como não podemos continuar a crescer, em termos de consumos materiais e energéticos, eternamente, num planeta finito, temos que arranjar outras maneiras.
Como não existem outras maneiras, porque toda a nossa infraestrutura social depende desse crescimento económico, o descrescimento é como se fosse um mapa, que, não estando trilhado, oferece uma maneira de ler a realidade e tomar decisões. A mim ajudou-me. Saí de Bruxelas, fui para o campo antes da pandemia, comprei casa com taxa fixa porque já previa o colapso. A guerra na Ucrânia, a inflação — nada disto me apanhou desprevenido.
Posiciono-me por essa grelha: as empresas com que trabalho, os temas que escolho, o sítio onde vivo. Mais do que uma coisa final, é um guia.
Susana: Teoricamente, definimos decrescimento como sendo uma crítica ao crescimento económico ou um modelo alternativo ao capitalismo — como a economia do doughnut ou a democracia participativa. Mas prefiro falar do decrescimento como forma de estar na vida e nas escolhas que fazemos.
Como o Guilherme diz, vivemos num planeta finito. Logo, crescimento económico infinito não faz sentido. Os limites existem em todo o lado. No caso do decrescimento, trata-se de uma auto-limitação para alcançarmos o que muitos chamam de justiça sócio-ecológica global. Para todos nós.
Quando e como é que nasce o movimento do decrescimento?
Susana: Há um antes e um depois do relatório Os Limites do Crescimento, feito pelo MIT e encomendado pelo Clube de Roma — um grupo de cientistas liderado pelo casal Donatella e o Denis Meadows, com vários investigadores envolvidos. Eles analisaram cinco pilares: crescimento demográfico, produção industrial, produção de alimentos, recursos naturais e poluição. Foi tudo baseado em dados objetivos e evidências científicas. A principal conclusão: com os consumos e crescimentos da altura, os limites planetários iriam ser alcançados em 100 anos. Isto, em 1972.
Este estudo foi revisto em 2004 e as conclusões mantiveram-se. Nada mudou porque nós também não mudámos muito os nossos comportamentos. Nos anos 70, autores como Serge Latouche e Ivan Illich começaram a estudar o decrescimento. Mas para mim, o que muda é isto tornar-se científico.
Guilherme: Os Limites do Crescimento deu muito que falar até à era Reagan, que trouxe a ideia de que, afinal, existia um recurso ilimitado, ou seja, a inventividade humana. Com o surgimento do neoliberalismo, a atenção dada ao decrescimento desaparece. Nas reuniões do Rio e nas COPs não se falou mais disso.
Na minha vida pessoal, o decrescimento surgiu por via francófona, com o livro do Pablo Servigne, Como Tudo Pode Colapsar. Ele tem mais dois livros: A Nova Lei da Selva e Um Outro Fim do Mundo é Possível, onde defende que, num cenário de colapso ambiental, em vez de caos, as pessoas entreajudar-se-iam. Ele é colapsologista: olha para a realidade, e vê que não há como escapar. Ou seja, o decrescimento não surge na minha vida como uma teoria, mas sim como uma vertente de análise muito bem desenvolvida em França. Há muitos pensadores que trabalham esta ideia, mesmo que não usem o mesmo termo.
Susana: A vantagem do termo “decrescimento” é que é um nome muito difícil de desconstruir. Não há greenwashing possível do termo.
O que é a Rede para o Decrescimento? Que iniciativas é que promove?
Susana: A Rede para o Decrescimento é um coletivo aberto, horizontal e participativo. Em Portugal existe desde 2018 e começou com um núcleo em Lisboa e no Porto. Hoje temos núcleos em Montemor, Mértola, Lisboa, Santarém, Castelo Branco. E organizamo-nos em círculos online e locais. Cada tema importante dá origem a um círculo: por exemplo, habitação ou saúde pública. Trabalhamos essas áreas e depois apresentamos aos colegas ou ao exterior.
Guilherme: Nesses círculos, identificamos tópicos difíceis e organizações que já atuam neles. Visitamos essas organizações para as conhecer e aos seus locais de atuação, e organizamos tertúlias e debates. Todos os anos temos um encontro nacional de dois ou três dias numa região, para refletir mais a fundo, conhecermo-nos e fazer perguntas difíceis. É muito orgânico e depende muito de quem organiza.
Como respondem à crítica de que o decrescimento quer regressar à Idade Média ou é sinónimo de recessão e miséria social?
Guilherme: Primeiro, decrescimento não é o mesmo que recessão. Recessão é uma crise do crescimento. O decrescimento é uma reestruturação controlada para sairmos da dependência do crescimento económico. Fazendo um paralelismo, há uma diferença entre pobreza e sobriedade. A pobreza magoa, não queres. A sobriedade escolhes, organizas e com ela vives melhor.
Por outro lado, o decrescimento defende que temos de coletivamente discutir o que significa o progresso e seguir noutra direção, mais coletiva. Decrescer os consumos materiais e energéticos leva a completos novos mundos. Por exemplo, a agricultura regenerativa consome menos recursos, mas pode gerar mais rendimento. Não queremos pobreza — isso ninguém quer. Essa crítica é de quem não quer reflectir sobre o que lhe está a ser proposto.
Susana: Essa crítica faz-me confusão. Não aceito que seja regredir à Idade Média nem miséria social. A verdade é que podemos produzir bens relacionais, como autonomia, cuidado, bem-estar, arte, cultura — tudo isso nos afasta da miséria social. O economista Timothée Parrique lançou recentemente o livro Abrandar ou Morrer, onde defende que não é necessário o crescimento económico. Podemos evoluir erradicando pobreza, reduzindo desigualdades, financiando serviços públicos, mitigando a crise climática. Não é parar a evolução — é evoluir de outra forma, não baseada no lucro e na acumulação.
Que outras formas existem de medir o progresso de um país, além do PIB, e porque é que fazem mais sentido num mundo em crise social e ecológica?
Guilherme: Há tantas formas, e há tantos governos que já fazem essas medições. O governo da Nova Zelândia tem mais de vinte métricas que medem o progresso social e não o crescimento: a quantidade de autocarros e facilidade de deslocação, o preço da habitação e do cabaz de alimentos face aos rendimentos, os níveis de felicidade, os da saúde… Há tantos indicativos. O decrescimento começa a erodir a obsessão com o PIB. Há muito para questionar. O crescimento do PIB não é problemático, a sua fetichização é que é. Se contarmos apenas com isso, vamos destruir tudo. Poluir um rio pode significar o aumento do PIB…
Com as crescentes dinâmicas de desglobalização, é imperioso que os nossos ecossistemas estejam capazes — que os rios e que as águas estejam limpas — para dependermos de onde estamos para fazer face a essas dinâmicas e aos choques climáticos.
Susana: A Nova Zelândia não afastou o PIB, logicamente, mas complementou-o com uma série de outras medidas. Esta visão de economia, muito mais holística, acaba por ser mais justa para governarmos qualquer sociedade. O governo da Nova Zelândia é muito mais justo para com os seus cidadãos.
Como imaginam uma cidade decrescentista?
Susana: Para mim, uma cidade decrescentista é uma cidade capaz de fazer a transição voluntária de uma sociedade industrial, extrativista e capitalista, para uma outra ambientalmente sustentável, e socialmente justa. Acima de tudo, uma cidade onde há igualdade, convivialidade, solidariedade, e algo que nós temos feito muito na Rede, que é a participação cidadã.
Guilherme: Uma cidade decrescentista tem que ser muito menor. Para mim, não há metrópoles decrescentistas. Uma metrópole tem de ser constantemente alimentada e em grande velocidade. Por sua vez, reduzir o tamanho das metrópoles levar-nos-ia a uma regeneração rural. Não podemos só resolver os problemas da cidade tentando manter tudo igual.
Também é essencial o empoderamento com modelos democráticos deliberativos. Fizemos experimentações em Bruxelas e Montemor com esse tipo de desenho de prioridades políticas, e é espetacular! Especialmente quando a participação é empoderada. Por último, temos que sair do veículo individual. Lisboa é uma cidade cheia de sol, não há nenhuma necessidade de ter a quantidade de carros que tem hoje em dia…
De que forma é que o decrescimento pode dar resposta aos problemas mais prementes de cidades como Lisboa, nomeadamente na habitação, saúde ou mobilidade?
Guilherme: Para reduzirmos o fluxo de pessoas para o centro das cidades, temos de reterritorializar as economias e voltar a ter pontes entre as cidades e o campo.
Isso consegue-se, por exemplo, através de cooperativas, modelos de cuidado, e moedas locais, por bairro ou por município. Em suma, temos de humanizar as estruturas para reduzir a pressão demográfica das cidades e apostar noutros núcleos populacionais.
É importante termos economias locais na ruralidade e, para isso, acredito profundamente que uma agricultura regenerada possa ser um grande motor para atrair pessoas para fora das cidades.
Tenho muito cuidado em tentar resolver os problemas das cidades mantendo-as como são hoje. Isso não existe. Só existe à custa de muita destruição ambiental. É a definição de insustentável.
Susana: Seja Lisboa, seja Nova Déli, uma máxima do decrescimento é colocar as pessoas à frente dos interesses económicos, que estão na base dos problemas de acesso à habitação e saúde nas grandes cidades.
Por outro lado, ao reduzirmos a poluição nas cidades, aumentar o número de espaços verdes ou difundir modos de vida menos sedentários… Tudo isso contribui para a saúde, preventivamente. O convívio com o próximo melhora a nossa saúde mental. Isso também deveria ser potencializado numa cidade decrescentista.
E no que a transportes toca, em Lisboa, por exemplo, devia ser perfeitamente possível deslocarmo-nos apenas a pé e de metro. É o que faço. Não temos de ter a necessidade de pegar no carro. Se houvesse uma rede integrada, quem mora longe já não precisava de carro para chegar aos locais de trabalho. Isso beneficiaria muito Lisboa.
Na vossa opinião, quais os principais projetos extrativistas em curso em Portugal que deveriam preocupar a população, e porquê?
Guilherme: Portugal está tapado de projetos extrativistas, sejam eles monoculturas florestais, de eucaliptos e pinheiros, e, em quase metade do território nacional, monoculturas agrícolas, que é grande parte da agricultura industrial que temos. Para além disso, temos minerações: vinte e cinco porcento (25%) do país está marcado pela prospeção de minérios, o que está a afetar áreas protegidas internacionalmente, como o Barroso, e outras. Temos resorts construídos em parques naturais, em dunas. Temos mares de painéis solares, milhares de hectar de artificialização de ecossistemas. Portugal está mesmo, mesmo, fustigado por projetos extrativistas.
Por isso, iremos lançar uma rede de apoio às comunidades que se organizam para lutar contra o extrativismo. Chama-se Brava: uma rede de resistência rural. Vamos ter financiamento, dar apoios, acesso a advogados, e fornecer guias de navegação burocrática, administrativa, judicial, de ação direta e organização política.
Do governo central não há qualquer preocupação com o tema. Pelo contrário, tudo quanto é um ato de extrativismo, ou é bom para o PIB, ou faz parte de uma estratégia a que eles chamam de “ecologista”, como seja a transição energética. Mas o maior problema de extrativismo em Portugal é mesmo a falta de consciência dos portugueses sobre o que isso é, e que impactos é que tem.
Susana: Não se tratando de um projeto extrativista, acrescentaria o aeroporto e a desafetação das áreas de REN e da RAN, que por algum motivo foram criadas. Estamos a destruir estas áreas, e vai ser complicado regenerar ou ter de volta os ecossistemas. Devemos preocupar-nos sobretudo porque se trata de projetos que colocam em causa a sustentabilidade ambiental, destroem ecossistemas, prejudicam a nossa saúde e porque não nos trazem bem estar.
Não seria mais ético permitir e até incentivar a exploração de minérios críticos em território europeu, se isso ajudasse a reduzir a dependência de mineração destrutiva e exploratória em países do Sul Global?
Guilherme: Seria, se fosse inevitável continuar a crescer tanto economicamente. Se quisermos continuar a crescer a esta velocidade, vamos ter que esburacar tudo: lá fora e aqui. Para não o fazermos lá fora, temos que destruir cá dentro. Mas isso é uma armadilha pois não nos permite questionar: e menos? Antes de qualquer mina ou parque solar, porque não nos questionamos até quanta eletricidade precisamos? Quantos aeroportos? Quanto turismo? É sempre mais?
Os limites já estão à vista, de Barcelona a Sintra. Sem teto, não há solução ecológica possível; fazemos um parque de painéis solares, mas logo depois precisamos de mais energia, então também precisaremos das minas. Portanto, a pergunta não é cá dentro ou lá fora, é até quando? É preciso definir um limite para descobrir e analisar novos mundos.
Susana: Se seria mais ético permitir esta exploração aqui? Tenho que dizer que sim. Mas o truque está em racionalizar os níveis de produção e consumo, sobretudo nos países do Norte Global, que têm mais prosperidade e maior pegada ecológica.
Penso que haveria maior equilíbrio global com a redução das desigualdades atuais, como refere Morena Hanbury Lemos, cientista em doutoramento em Barcelona; ela defende que o atual sistema de trocas internacional é muito desigual pois por um lado fomenta o consumo excessivo no Norte, e por outro, coíbe os países do Sul Global de utilizarem os próprios recursos.
Que conselhos dariam a um jovem assustado com a crise climática e dos ecossistemas em como integrar alguns princípios do decrescimento nas suas escolhas para a vida pessoal e profissional?
Guilherme: Isto é um bocado dark, ok? Precisamos de decrescer os consumos energéticos e materiais do mundo em sessenta porcento (60%) nos próximos dez a quinze anos. Todos juntos: a China, o Estados Unidos, o Brasil, a Europa… Ou seja, não vai acontecer. A ansiedade que sentem é um facto — ecológica, estrutural, financeira, logística, económica, social. Vêm aí tempos muito complicados. Esse futuro em que nos projetámos, essas vidas faraónicas das redes sociais — não têm sustento material. A primeira coisa que eu diria é interiorizar bem isso. Lidar com esse luto não é fácil.
Depois, organizar em grupos. Em Bruxelas, reuníamo-nos todas as quartas-feiras em casa uns dos outros. Falar sobre isto ajuda muito. Tomem decisões em conformidade. Se sair de uma metrópole é complicado, por não haver redes de segurança, procurar redes alternativas. Isso abre novos caminhos, interiores e exteriores. O decrescimento não é pobreza, nem idade das trevas. É uma nova leitura da realidade que pode ser muito enriquecedora. Há setores que têm de crescer — a agricultura regenerativa, é um deles.
Susana: Acho que ninguém pode fazer escolhas sem informação. Conhecimento é poder. É importante saber que nem sempre há benefício social no crescimento económico. Falamos em erradicar a pobreza, mas nunca em erradicar a riqueza extrema.
Mas não basta apenas criticar o crescimento económico. É preciso adoptar uma visão holística: destruição ambiental e desigualdade social estão conectadas. Com essa visão holística conseguimos fazer escolhas com conhecimento e reduzir a eco-ansiedade. Por outro lado, se calhar o melhor é parar de estudar e fazer alguma coisa.
Guilherme: Sim, é preciso lutar. Não é só consciência ou escolhas individuais. Há pouca reflexão sobre a dinâmica do poder no movimento pelo decrescimento. Mas se não exerces poder, alguém o exercerá sobre ti. Como levamos a que políticas decrescentistas aconteçam se o poder está nas mãos de quem quer crescer?
Por outro lado, a luta não se faz de forma institucional. É necessário envolvermo-nos em associações e movimentos, nomeadamente os de defesa dos ecossistemas.
Susana: Faz todo o sentido. Mas estando eu a morar em Lisboa, e fazendo parte de um partido político, também me faz sentido essa luta dentro do sistema. Posso tentar mudar as coisas, nem que seja um bocadinho.
Guilherme: Tendo a discordar. Politicamente, o decrescimento não vende. Os partidos não o adotam. Ou entramos com algo realmente decrescentista e coerente, ou estamos só a dar achegas a um modelo crescentista. Nunca vi essas dinâmicas funcionarem. Mas cada um com a sua luta — desde que se lute.
Biografias
Susana Ribeira
Licenciada em Relações Internacionais, Susana Ribeira é ativista pela justiça ecológica e social na Rede para o Decrescimento, desde 2020. Participa ativamente nos círculos de comunicação e ecofeminismo, integrando o núcleo de Lisboa da rede. Com experiência política no PAN a nível autárquico e nacional, procura articular esse conhecimento com a prática do decrescimento. Vive em Lisboa, é casada, tem dois filhos e dedica o seu tempo disponível ao ativismo, colaborando também numa empresa familiar.
Guilherme Serôdio
Com formação em Direito e Relações Internacionais, Guilherme Serôdio trabalhou com instituições como as Nações Unidas, bancos mundiais e think tanks, entre Nova Iorque, Brasil e Bruxelas. Foi em Bruxelas que aprofundou o seu ativismo, ajudando a criar movimentos, associações e partidos. Confrontado com o conflito entre instituições pró-crescimento e a urgência ecológica, decidiu regressar a Portugal a pé e instalar-se em Montemor-o-Novo. Aí fundou uma empresa de agricultura regenerativa de larga escala, que alia ecologia e viabilidade económica no mundo rural.
